Meu nome é Nardélio Fernandes Luz, mas a maioria dos meus amigos me chamam de “Narfe”, que é a abreviatura dos meus dois primeiros nomes.
Eu era um cara extremamente ativo. Adorava viajar e minha profissão facilitava em muito isto, pois peguei a febre das duplagens de caminhonetes e como eu era um funileiro mais puxado p/ o ramo de adaptações e até criações de veículos, era bastante solicitado. Cada vez mais abriam-se novas firmas de duplagens pelo interior do Brasil e, eu, já bem conhecido, era chamado p/ integrar o quadro de funileiros. Eu nunca consegui ficar muito tempo num só lugar, pois sempre gostei de conhecer lugares e pessoas diferentes. Com isso, trabalhei em várias cidades do país.
Em julho de 98, aos 31 anos, mergulhei de mau jeito num rio e bati com a cabeça, fraturando a sexta vértebra cervical, o que causou uma lesão medular irreversível. Foram nove cirurgias no pescoço p/ extrair os fragmentos da vértebra (6a ) que explodira com o impacto e substituí-la por ossos transplantados da crista ilíaca (osso localizado na virilha) e implantes metálicos. Foi um período de quase 2 meses de completa imobilidade no hospital, onde fui acometido de várias infecções hospitalares (inclusive três pneumonias) que quase me levaram desta pra melhor... ou pior... sei lá, pois sempre pequei demais e acho que jamais alcançarei o céu... se é que esse existe.
Pois bem, contrariando algumas opiniões pessimistas, sobrevivi. Quando saí do hospital, independente da minha imobilidade, procurei reunir a maior quantidade possível de material sobre meu problema e estudá-los; meu objetivo era conhecer o máximo sobre o assunto p/ não alimentar falsas esperanças.
Como antes eu viajava muito, a maioria dos meus amigos moravam (e moram) fora de Uberlândia. Aqueles que não podiam visitar-me, me escreviam, de maneira que eu recebia dezenas de cartas. Todos na minha casa são inimigos declarados de papel, caneta, leitura ou qualquer coisa literária (sou a única ovelha negra... hi,hi,hi!), de maneira que eu tinha que descobrir um modo de responder as cartas.
Aos poucos recuperei parte da musculatura dos ombros e dos braços, que me permitiam (permitem) alguns movimentos, ainda que muito restritos. Como meus dedos e a maior parte dos músculos dos braços são paralisados, eu não podia escrever à caneta. Comprei uma máquina de escrever eletrônica, pedi ao meu irmão que me fizesse uma mesinha (tipo aquelas de café da manhã), levantasse a cabeceira da minha cama (daquelas de hospital) e prendesse tubinhos de caneta com esparadrapo nas palmas das minhas mãos. Como meus bíceps ainda funcionavam, eu os usava p/ erguer os braços, e ao soltá-los, a força da gravidade fazia o resto. Os tubinhos batiam desajeitadamente nas teclas, mas as acionavam, e aos poucos fui aprendendo a controlar os poucos movimentos que me restaram. Como minha lesão é C5 no lado esquerdo e C6 no direito, obviamente tenho menos controle no esquerdo e uso mais o braço direito... outra sorte, pois sou destro. Desta maneira comecei a escrever, no início “catando milho”, depois fui superando as dores e aperfeiçoando. Foi um processo demorado, que exigiu muito esforço e, principalmente, muita paciência. Mas, enfim, a persistência levou-me à vitória.
Ano e meio depois fiz um tratamento intensivo de 2 meses no Sarah Kubitschek de Belo Horizonte (hospital especializado em reabilitação), onde aprendi um pouco mais sobre minha deficiência e as complicações internas causadas por ela.
Geralmente, quando se vê um deficiente (principalmente tetraplégico) na rua, imagina-se que seu único problema é a imobilidade. Essa idéia é completamente equivocada. As complicações internas são muito superiores à falta de movimentos. Bexiga e intestinos não mais funcionam e os rins ficam comprometidos. O coração tem que trabalhar dobrado p/ bombear o sangue onde não mais têm músculos p/ ajudá-lo. A circulação fica seriamente comprometida e ainda temos que tomar extremos cuidados p/ evitar infecções de urina e as famigeradas úlceras de decúbito (feridas), popularmente chamadas de escaras.
Não vou usar falsa modéstia e dizer que a vida de um tetraplégico é fácil, pois absolutamente não é; principalmente por causa da extrema dependência em quase tudo: banhos, virar na cama, funcionar intestino, passar p/ cadeira, ser levado aos lugares que precisa, enfim... quase tudo mesmo. E o pior é que nem sempre as pessoas de quem dependemos fazem isso de boa vontade... isso deprime... dói pacas. Mas, enfim, a gente acaba se acostumando e descobre que existe vida após a paralisia. Foi pensando nisto que dei o título ao livro que estou tentando escrever: “Vida Após a Vida”.
Graças ao treinamento e adaptadores especiais (feitos de pvc e velcro), adquiridos no Sarah, hoje consigo me alimentar, escovar os dentes e escrever sozinho... além de outras pequenas coisas (como segurar o copo de cerveja... he,he,he!). Depois veio o computador, presente das minhas adoráveis primas de BH, que funciona p/ mim como uma espécie de psicólogo, me ajudando a combater a depressão e estabelecer uma comunicação mais abrangente com o mundo... e aqui estou.
Como é comum nestes casos, os “amigos” foram se afastando aos poucos, até desaparecerem por completo, e hoje me restam pouquíssimos. No entanto, somente aqueles leais, em quem posso confiar..., o que é muito melhor. E também continuo conquistando novas e ótimas amizades, principalmente através da Internet. No mais, aprendi que quantidade é ilusão, qualidade é o que realmente importa, e boa qualidade é algo que meus amigos possuem com sobra.
(Narfe.)
http://www.amputadosvencedores.com.br/deppoimento_nardelio.htm
sábado, 19 de maio de 2007
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